sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Proibida a entrada a quem não andar espantado de existir

Um dos comediantes mais elogiados dos últimos anos é o Loius CK. Seus stand ups provocativos falam o que muitos de nós gostaríamos de dizer, mas não dizemos porque não temos a liberdade que têm os humoristas. Um dos seus vídeos mais célebres é parte de uma entrevista que ele deu ao Conan O'Brien algum tempo atrás. Veja:



O que você acha? Somos assim mesmo? Temos hoje maravilhas tecnológicas a nosso redor e continuamos idiotas mimados e infelizes? Ele disse "tudo é maravilhoso e todo mundo é feliz"? Não! Tudo é maravilhoso, e ainda assim insistimos em sermos infelizes. Vamos falar disso então.
Em primeiro lugar, a felicidade está muito mais relacionada a uma postura, uma atitude, do que a uma circunstância ou conjuntura. Por que as pessoas se declaram mais felizes em países mais pobres, onde há menos maravilhas da civilização, do que em países ricos e prósperos? Entre outras coisas, é por causa de sua postura em relação às coisas. Colocando de outra forma, se você se propuser a ser pessimista, encontrará motivos para isso. Se desejar ser depressivo, também. Da mesma forma, há um monte de motivos para ser feliz. Um dos possíveis caminhos é se maravilhar com a realidade a seu redor, reconhecer sua beleza e importância, e abraçar a postura de gratidão. 
Voltando ao vídeo, temos muito mais a agradecer por existir celular ou viagens aéreas do que a reclamar com falhas de sinal ou atrasos nos aeroportos. O maravilhamento leva à gratidão, e esta contribui para a felicidade. A esse respeito cabe um trecho muito conhecido do texto bíblico entre os cristãos. É I Tessalonicenses 5:18: "Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco". Minha gente, é "em tudo dai graças", e não "de tudo dai graças"! Devemos estar gratos apesar das circunstâncias ruins e não por causa delas. É uma questão de postura, não de cegueira.


Dentre tudo o que podemos considerar de maravilhoso, há Deus. O encanto é um atributo de Deus. Não podemos racionalizá-lo; podemos apenas nos assombrar. O livro de Jó (9:1-20) fala da sabedoria, do poder, do controle sobre a natureza, da grandiosidade e da capacidade criativa de Deus. 
Jó, um homem rico e poderoso e que poderia ser um homem difícil de se espantar, via Deus assim. E como Deus era visto por Davi, o salmista, que foi de camponês a rei, e também tinha experimentado muitas maravilhas em sua vida? Salmos 40:5: "Muitas são, SENHOR meu Deus, as maravilhas que tens operado para conosco, e os teus pensamentos não se podem contar diante de ti; se eu os quisera anunciar, e deles falar, são mais do que se podem contar". Salmos 66:5: "Vinde, e vede as obras de Deus: é tremendo nos seus feitos para com os filhos dos homens". E Salmos 84:2: "A minha alma suspira! sim, desfalece pelos átrios do Senhor". Veja a linguagem de perplexidade: maravilhas, feitos tremendos, alma desfalecendo. Deus é espantoso.


AJ Heschel, um dos mais proeminentes teólogos judeus do século XX, escreveu um livro chamado "O homem não está só". No segundo capítulo desse livro, ele chama nossa atenção para importantes implicações filosóficas do maravilhamento e a sua relação com o conhecimento.


Abraham J. Heschel


O conforto com a realidade e com o convencional, isto é, a ausência de uma atitude de maravilhamento perante as coisas, leva a um impedimento ao conhecimento e a se ter prazer nele. É, portanto, uma postura alienante. A indiferença é cegueira. Ainda segundo Heschel, para chegar ao conhecimento, podemos usar a dúvida ou o espanto. A dúvida é uma hesitação entre visões contraditórias; é uma auditoria do que a mente vê como realidade. Mas ela não é o primeiro passo da apreensão do conhecimento, pois primeiro se vê, depois se forma opinião, e finalmente se aplica a dúvida. 
Podemos lembrar, então, duas formas clássicas de se entender o mundo. Primeiro, com Agostinho: credo ut intelligam (creio para conhecer). Mas daí pode decorrer uma ignorância crônica, a partir do viés de confirmação. Depois, temos Descartes: dubito ut intelligam (duvido para conhecer). Aí também há problema, pois começar pela dúvida implica numa filosofia que leve ao desespero, como bem se nota em Schopenhauer. Já Platão (ver diálogo Teeteto) afirma: "a filosofia começa com assombro". Heschel completa: "A dúvida pode acabar; o maravilhamento dura para sempre".


A atitude de assombro diante do mundo é adequada porque de fato o mundo é assombroso. Apesar de estarmos acostumados com ele, ainda assim ele é uma loucura. Porque uma coisa é recorrente, ela não deixa de ser espetacular. 
Imagine que você saiu de casa e viu um elefante rosa voando. Se isso acontecesse todos os dias, viraria rotina. Mas não deixaria de ser espetacular! O mundo é um elefante rosa voador. O problema é que frequentemente cometemos o erro de considerar conhecido e previsível o que de fato é desconhecido e absurdo.
Deve-se tomar um cuidado, porém. O fascínio não é um estado de contemplação inativa. Ao contrário, ele motiva a ação! Ele leva à inquietação, e esta por sua vez leva ao conhecimento.


Outro grande pensador do séc. XX é G. K. Chesterton. Seu livro "Ortodoxia" é uma obra-prima tanto da obstinação quanto da humildade que o Cristianismo inspira no homem. Nesse livro ele também fala do maravilhamento, ao longo do capítulo "A Ética da Elfolândia".
Chesterton logo afirma que as coisas em si são espetaculares, mais ainda do que suas versões exóticas. A humanidade em si é muito mais impressionante que as civilizações, o poder e as artes. Um homem em pé é mais espantoso que uma caricatura. A morte em si é muito mais trágica que um genocídio, e ter um nariz é muito mais cômico que usar um nariz de palhaço.




GK Chesterton


Um dia desses eu estava na Livraria Cultura da Av. Paulista, e bem na minha frente se repetia uma linda cena familiar. Parte da livraria tem o chão inclinado, e embaixo se posicionou um pai. Alguns metros acima, sua filhinha, de uns 4 ou 5 anos. Ela descia correndo, a toda velocidade, para os braços do pai. Então ela dizia: "de novo, de novo!!", subia a rampa, e fazia tudo de novo. As crianças tem essa vitalidade de aproveitar a vida mesmo nas coisas mais simples e ainda assim se fascinar. Aí lembrei do Chesterton, que justamente lembra dessa atitude exuberante e infantil de querer as coisas "de novo" e nos pergunta se Deus também não faz o mesmo com inúmeros fenômemos da natureza: "de novo", diz Ele, e o sol volta a nascer. "De novo", e as estações se repetem. Cristo, de certa forma, também falava dessa atitude perante o mundo quando nos disse: "Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus" (Mateus 18:3).
O mundo e as pessoas são fantásticos, e isso nos leva a diversas atitudes: daremos maior valor a eles, aproveitaremos melhor a vida e louvaremos a Deus pelo que Ele fez e faz.


É claro que não podemos aplicar o maravilhamento indiscriminadamente. Rigorosamente, espantar-se com absolutamente tudo é ser bobo. Mas quando não deveremos nos espantar? Isso é assunto pro próximo post.
José Gomes Ferreira, autor português, em seu livro "As Aventuras de João Sem Medo", descreve como João, antes de entrar num mundo fantástico, vê a seguinte frase escrita num muro: "É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR". Seria um conselho bacana pra se dar a qualquer recém-nascido.
Queridos, vamos olhar a realidade com olhos que façam justiça a seu encanto. Isso nos levará a ser mais gratos, nos abrirá a mente para os profundos atributos de Deus, nos conduzirá a uma expansão de conhecimento e nos inspirará a valorizar mais o homem e a natureza.



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