"A um brasileiro apercebido dos seus deveres de solidariedade para com os povos que pertencem ao seu mesmo tipo de civilização específica, não podem deixar de interessar aquelas populações como a de Goa, a de Moçambique, a de Angola, a da Guiné, que olham para o Brasil, em geral, e para São Paulo, em particular, como para uma evidência irrecusável de que talvez esteja em nosso tipo de civilização a solução mais adequada aos problemas de encontro de europeus com não-europeus em regiões tropicais e quase tropicais. Donde a necessidade de cada vez mais passarmos, os brasileiros, a pensar, a sentir e a agir como um povo em grande parte responsável pelo destino de outros povos, separados de nós por grandes distâncias físicas porém próximos de nós pelas formas de cultura; e cujo futuro, como cultura em desenvolvimento, talvez seja inseparável do futuro brasileiro.
Em livro recente e ricamente sugestivo, prejudicado menos que o do Professor Jacques Lambert pelo gôsto excessivo de generalização, mas ainda assim um tanto incontinente em certas de suas generalizações, um sociólogo francês, que todos os estudiosos brasileiros de assuntos sociológicos estimam e admiram - o Professor Roger Bastide - reconhece ter o Brasil se tornado potência demasiado grande para limitar seu destino à América do Sul. É uma nação que tem, a seu ver, papel internacional a desempenhar no Mundo de hoje. E refere-se, a êsse propósito, à idéia de uma federação de países de língua portuguêsa, infelizmente sem considerar, como devia ter considerado, a base sociológica para uma tal federação de evidente importância política, oferecida por aquêles seus colegas brasileiros que vêm sugerindo a especificidade de uma civilização dinâmicamente luso-tropical: civilização em desenvolvimento e não estabilizada. Idéia a que opõe a de uma "missão mais bela"- palavras suas - para o Brasil que seria a de pertencer o mesmo Brasil, de modo evidentemente mais efetivo, a um mundo latino que, a seu ver, deve erguer-se entre o mundo anglo-saxônico e o mundo eslavo, para salvar valores hoje ameaçados. A civilização latina estaria na Europa sob o perigo de imobilizar-se em formas arcaicas. O Brasil poderia concorrer para o seu revigoramento. E, desempenhando êsse papel, seria a grande nação mediadora entre a América, a África e a Europa.
Não vejo por que essa missão não possa vir a ser desempenhada pelo Brasil. Em certo sentido, e à revelia de políticos brasileiros ainda arcaicos em seus métodos de fazer política, é uma missão que já está sendo desempenhada pela cultura brasileira através dos seus Villa-Lobos, dos seus arquitetos modernos, dos seus pintores atuais, de alguns dos seus modernos pensadores e cientistas sociais.
Mas para cumprir essa missão, no melhor sentido da palavra, platônica, pensam alguns sociólogos brasileiros caber ao Brasil, agir, antes, aristotèlicamente, isto é, pragmàticamente; e articular-se com os demais povos hispano-tropicais, em geral, e luso-tropicias, em particular - povos que já não são particularmente latinos porém vêm juntando a uma herança multieuropéia valores de culturas tropicais, ameríndias, africanas e asianas, através de métodos especificamente hispânicos de interpenetração - numa possível comunidade federada. Assim, aquela sua mediação representará para o homem moderno alguma coisa mais do que a experiência brasileira: um conjunto de experiências da parte de portadores de uma cultura da mesma origem européia, que em vez de pretenderem guardar pura e apolínea essa cultura, misturaram-se a culturas não-européias, criando novas culturas que se vêm adaptando aos trópicos sem sacrifício de valores apurados pela experiência européia.
Dessas experiências, a experiência brasileira talvez seja a mais arrojada: a vanguarda. Mas não a única. Melhor é para o homem moderno receber os benefícios do conjunto de tais experiências que, mais do que uma mediação entre a Europa, a América e a África, podem representar uma mediação mais vasta e mais plástica: entre a Europa e o Trópico. E o grande mediador entre a Europa e o Trópico tem sido, não um vago latino, mas o hispano. Principalmente o português, a ser continuado num futuro já presente, pelo brasileiro."
Fonte: FREYRE, Gilberto. O Brasil, mediador entre a Europa e o trópico. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 22 jul. 1961.
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