Paulo Azevedo: Você poderia falar um pouco sobre a história do seringal Cachoeira e sobre a luta que foi pra que ele fosse protegido, por meio da criação da reserva extrativista?
Nilson Mendes: [Desde o primeiro ciclo da borracha], chegavam os nordestinos para explorar a borracha e acabaram se adaptando à floresta e ficando produzindo até os anos 60. Depois dos anos 60 começou a melhorar, entrar mais um produto que é a castanha. Começou a ser conhecida fora do Brasil, no Brasil poucos conheciam a castanha, era produzida aqui e já saía diretamente para exportação. Aí veio o tempo que o governo brasileiro achava que esse potencial florestal não era mais viável. Então veio aí os anos 70 quando foi aberto o espaço para a pecuária. Aqui no Acre, como é uma parte muito boa, com muita terra plana, aqui foi que chegaram muitos sulistas que começaram a trocar a floresta pelo boi. Então desmatava a floresta, queimava e botava o boi. E o seringal cachoeira até os anos 70 ficou ainda comandado por patrão e daí o patrão conseguiu que demarcasse a sua terra e a vendeu pros fazendeiros. O que ele queria era transformar esses 24 mil ha de floresta em pastagem.
Aí a gente começou a ver que a gente tinha que se organizar. Porque não adiantava o sindicalista falar em conservação ambiental sem o processo produtivo. Então o movimento organizado através do empates foi muito em cima disso. Aí eles passaram um trecho de terra, uma parte do seringal pra um fazendeiro chamado Darli Alves. Aí ele foi e prometeu que se ele perdesse isso aqui o Chico não viveria, então foi isso que aconteceu. Nós os seringueiros fizemos o empate de 3 meses e conseguimos a conquista da terra, mas eles mataram o Chico Mendes, em 22 de dezembro de 1988. Em 1989 foi quando o governo assinou o decreto de assentamento de reserva, depois que mataram o Chico Mendes, um ano depois.
Pra gente se estabilizar a gente teria que ter um processo econômico mais viável, e a gente não tinha acesso, não tinha estrutura. E a gente começou a observar que tinha que buscar apoio, mas não tinha apoio em canto nenhum porque não tinha governos voltados pra essa população tradicional, aí a gente teve que se organizar em cooperativas e associações e pensamos em criar uma associação porque diziam "Só podemos liberar dinheiro se tiver associação e estiver OK", mas ninguém sabia o que era uma associação e o que precisaria pra uma associação funcionar. Aí a gente fez um projeto de desenvolvimento pra comunidade, conseguimos trazer os banqueiros, o BID, o BNDES e outros aqui. Também trouxemos ministros, presidente da república, e aí começamos a mostrar que era possível o desenvolvimento das comunidades amazônicas. Que a gente tava aqui na ponta mas a gente tem um potencial muito forte, não só a seringa, não só a castanha, não só a madeira. Torraram muita madeira. Brocavam, derrubavam, queimavam, sem tirar esse potencial e expor no mercado, e servir a sua própria sociedade. E sim, só viam o caminho da exportação e pouco tiravam de qualquer forma. E aí a gente teve que trabalhar os processos diferenciados pra comunidade, no caso o manejo florestal de uso múltiplo, e aí trouxemos em 99 o plano de manejo florestal de madeira pra cá.
Paulo Azevedo: Qual é a renda média de um trabalhador aqui na reserva ao longo do ano?
Nilson Mendes: A renda média é de R$ 6000 por ano, que é um valor muito alto, pois em alguns lugares estão em saldo negativo.
PA: Nesse valor o senhor se refere ao manejo da madeira e também castanha e seringa ou somente a madeira?
NM: A gente tem 30 famílias envolvidas no manejo da madeira mas a maior parte é só na castanha, borracha, açaí e a sua roça pra subsistência. Então assim, a gente sabe que esse projeto de manejo florestal é uma composição, é um projeto piloto.
Em 10 hectares de floresta de manejo florestal nós temos em média 338 árvores em ponto de corte. Mas, enquanto temos 338 árvores, nós só selecionamos para um prazo de 40 anos uma média de 25 árvores, quer dizer, 10 m3 por hectare, enquanto uma empresa, com corte profundo, tira 70 m3 num hectare. Então a gente sabe que isso garante a sustentabilidade e a continuação das espécies sem botar em risco sua sobrevivência.
PA: Para que o nosso leitor possa ter uma idéia do valor da floresta em pé, quanto vale mais ou menos o m3 da madeira dessa qualidade que o senhor mencionou?
NM: Olha, quando tem todo o acabamento final, dá uma média de R$ 1200, só que o custo dessa produção pra ficar assim acabado chega a uns R$ 800 reais. Para o produtor, fica ao redor de R$200 livre por metro cúbico. Mas isso já é muito porque o processo de garimpagem pagaria R$10 por m3 e em muitos cantos não pagaria nada porque ele sabia que se o produtor pressionasse perderia o produto porque é um processo ilegal, e quando é ilegal, todo mundo sabe o que dá. Então é muito melhor você pagar, porque isso é sustentabilidade também. Então esse plano a gente tá trabalhando ele e tá vendo se a gente aumenta cada vez mais a renda pro produtor, mas a gente sabe que não é fácil, porque o produtor sempre é visto como segundo plano. Mas aqui no Acre a gente já tem dado uma patente mais alta para os extrativistas, para os seringueiros. E a gente discute o processo de desenvolvimento sustentável. E a sustentabilidade não é produzir só madeira. Aquele que estiver pensando em produzir só madeira esqueça, porque isso não é plano de desenvolvimento. Pra nós, amazônicos, a monocultura não é desenvolvimento sustentável. O que é sustentabilidade pra nós incorpora não só a seringa, a castanha, a madeira, o açaí e outros produtos, mas o peixe, a fauna e tudo o que o produtor tem, como galinha, pato e porco e tudo o que ele cria em volta da sua casa. Quem está lá fora deve enxergar isso, e ver a floresta não só como um santuário, mas como uma área que pode produzir e manter o verde para sempre.
Conversa na mata. Helliny estava com a gente, amiga goiana com coração acreano.
PA: Quais as perspectivas de que a reserva receba dinheiro por manter a floresta em pé, seja de governos estrangeiros ou do governo federal? Ou de receber por créditos de carbono?
NM: Essa é uma discussão nova que está acontecendo aqui na Amazônia. Vive na Amazônia muita gente pobre, muita gente carente, muita gente ainda passa necessidade com tanto dinheiro que circula no mundo. Eu acredito que o Brasil tá fazendo uma campanha de mostrar para o mundo que nós somos capazes de fixar carbono e essa é uma discussão que acontece e a gente pode com certeza ganhar para que a floresta se mantenha e pé. Eu acho que isso seria muito viável, mas precisaria que todos aqueles que degradaram pudessem fazer o seu reflorestamento e manter o equilíbrio.
E a gente sabe que árvore crescendo é sequestro de carbono. Então a árvore que já parou de crescer ela não vai mais fazer isso. Quando você tira e dá oportunidade pra outra crescer, você está fazendo exatamente o que a Amazônia precisa, o que naturalmente a natureza já faz.
PA: O governo federal e o governo do Acre implantaram aqui em Xapuri uma fábrica de preservativos. Qual foi o impacto dessa fábrica no mercado de borracha e aqui na reserva?
Extração do látex da seringueira.
NM: Essa fábrica de preservativos foi um benefício muito bom. O Acre não tinha infra-estrutura adequada até 3, 4 anos atrás. E a gente falava em desenvolvimento sustentável com os produtos produzindo, mas não tínhamos uma fábrica de beneficiamento de castanha de qualidade, não tínhamos uma fábrica de preservativos, então assim, todo produto tinha que sair para fora pra voltar novamente pra gente comprar esse produto muito caro. Na verdade a fábrica de preservativo veio ajudar muito pra gente reativar todas as estradas de seringa porque a seringa tava bancando até 3 anos atrás R$250 por ano em média pra cada família extrativista. Então estava quase sendo inviável você abrir uma estrada e cuidar dela, e cortar. Porque não é fácil você rodar 14km por dia a pé pra manter o látex à disposição da fábrica, se não tivesse um preço melhor. Porque hoje se paga R$4,80 por quilo de borracha seca (preço no segundo semestre de 2009), quer dizer 2L de leite vai dar um quilo de borracha seca. Quase todos os seringueiros aqui em Xapuri conseguiram voltar a suas terras e fazer a reabertura das suas estradas. Tiramos, aqui no cachoeira, uma média de R$4160 no ano passado no látex. E na castanha, uma média de R$3000 (Nota do entrevistador: somando esses valores, temos mais que os R$6000 anteriormente referidos. Isso ocorre pois esse valor é a média de todos os trabalhadores da reserva. Mas nem todos produzem tanto látex quanto castanha. Os valores individuais de cada produto se referem à média dos trabalhadores que o produzem). Eu acho que uma unidade com uma média de 300 ha de floresta tem capacidade sim de manter os seus filhos e netos ali localizados no local de forma ordenada. Mas isso precisa de um bom monitoramento e com certeza o governo vai estar empenhado pra bancar esse desempenho junto aos segmentos sociais que a gente sozinho não tem força. Mas quando juntamos os segmentos sociais com o poder de governo e buscando uma parceria de troca de experiência e conhecimento com as universidades do Brasil e do mundo a gente é capaz de fazer uma história mudar, e mudar a vida de um povo.
PA: A gente percebe uma atividade muito grande das ONGs estrangeiras aqui no Acre. Você já teve contato com alguma entidade, ou pessoas, que estão se disfarçando de membros de ONGs, de ambientalistas, mas na verdade estão defendendo os interesses das grandes potências e de suas empresas?
NM: A gente sabe que há muitas pessoas interessadas nisso. Mas a gente também tem que aprender a fazer uma troca de experiências. A única coisa que você tem que ter é auto-controle nas comunidades para que não aconteça a biopirataria. Agora, quem quiser contribuir para o desenvolvimento sustentável, a gente tá de braços abertos pra receber e trocar experiências.
Linha (estrada secundária) no Seringal Cachoeira.
PA: Como está a cooperação da reserva com universidades ou com empresas para que o conhecimento que foi acumulado aqui ao longo das décadas sobre todo esse potencial que a Amazônia tem, seja explorado e chegue mais facilmente às pessoas de fora da região?
NM: A cooperação é muito importante quando as universidade entram, os órgãos de pesquisa como Embrapa e outros entram. Aí começa a descobrir, mesmo às vezes demorando, porque pesquisa você sabe que leva tempo para dar um resultado. Mas é melhor começar agora do que começar depois, quando não tiver mais jeito. Eu acho que ainda temos jeito na Amazônia e sim, esses processos de pesquisa, troca de experiência, eles são muito importantes. É muito importante a questão de descobrir os potenciais medicinais, para salvar vidas. E também as riquezas biológicas, para garantir as espécies para o futuro e evitar os riscos de extinção.
Eu só acredito que a gente pode ter um grande sucesso futuramente porque já tá tendo essa cadeia, essa troca de experiência entre o poder capital e o poder social. E mostrar que só trazendo o processo de engenharia e as faculdades pra desenvolver as pesquisas e mostrar os potenciais que temos, isso é capaz de mostrar a sustentabilidade que a floresta tem.
[Texto publicado em março de 2010 no jornal "O Politécnico"]