sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Proibida a entrada a quem não andar espantado de existir

Um dos comediantes mais elogiados dos últimos anos é o Loius CK. Seus stand ups provocativos falam o que muitos de nós gostaríamos de dizer, mas não dizemos porque não temos a liberdade que têm os humoristas. Um dos seus vídeos mais célebres é parte de uma entrevista que ele deu ao Conan O'Brien algum tempo atrás. Veja:



O que você acha? Somos assim mesmo? Temos hoje maravilhas tecnológicas a nosso redor e continuamos idiotas mimados e infelizes? Ele disse "tudo é maravilhoso e todo mundo é feliz"? Não! Tudo é maravilhoso, e ainda assim insistimos em sermos infelizes. Vamos falar disso então.
Em primeiro lugar, a felicidade está muito mais relacionada a uma postura, uma atitude, do que a uma circunstância ou conjuntura. Por que as pessoas se declaram mais felizes em países mais pobres, onde há menos maravilhas da civilização, do que em países ricos e prósperos? Entre outras coisas, é por causa de sua postura em relação às coisas. Colocando de outra forma, se você se propuser a ser pessimista, encontrará motivos para isso. Se desejar ser depressivo, também. Da mesma forma, há um monte de motivos para ser feliz. Um dos possíveis caminhos é se maravilhar com a realidade a seu redor, reconhecer sua beleza e importância, e abraçar a postura de gratidão. 
Voltando ao vídeo, temos muito mais a agradecer por existir celular ou viagens aéreas do que a reclamar com falhas de sinal ou atrasos nos aeroportos. O maravilhamento leva à gratidão, e esta contribui para a felicidade. A esse respeito cabe um trecho muito conhecido do texto bíblico entre os cristãos. É I Tessalonicenses 5:18: "Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco". Minha gente, é "em tudo dai graças", e não "de tudo dai graças"! Devemos estar gratos apesar das circunstâncias ruins e não por causa delas. É uma questão de postura, não de cegueira.


Dentre tudo o que podemos considerar de maravilhoso, há Deus. O encanto é um atributo de Deus. Não podemos racionalizá-lo; podemos apenas nos assombrar. O livro de Jó (9:1-20) fala da sabedoria, do poder, do controle sobre a natureza, da grandiosidade e da capacidade criativa de Deus. 
Jó, um homem rico e poderoso e que poderia ser um homem difícil de se espantar, via Deus assim. E como Deus era visto por Davi, o salmista, que foi de camponês a rei, e também tinha experimentado muitas maravilhas em sua vida? Salmos 40:5: "Muitas são, SENHOR meu Deus, as maravilhas que tens operado para conosco, e os teus pensamentos não se podem contar diante de ti; se eu os quisera anunciar, e deles falar, são mais do que se podem contar". Salmos 66:5: "Vinde, e vede as obras de Deus: é tremendo nos seus feitos para com os filhos dos homens". E Salmos 84:2: "A minha alma suspira! sim, desfalece pelos átrios do Senhor". Veja a linguagem de perplexidade: maravilhas, feitos tremendos, alma desfalecendo. Deus é espantoso.


AJ Heschel, um dos mais proeminentes teólogos judeus do século XX, escreveu um livro chamado "O homem não está só". No segundo capítulo desse livro, ele chama nossa atenção para importantes implicações filosóficas do maravilhamento e a sua relação com o conhecimento.


Abraham J. Heschel


O conforto com a realidade e com o convencional, isto é, a ausência de uma atitude de maravilhamento perante as coisas, leva a um impedimento ao conhecimento e a se ter prazer nele. É, portanto, uma postura alienante. A indiferença é cegueira. Ainda segundo Heschel, para chegar ao conhecimento, podemos usar a dúvida ou o espanto. A dúvida é uma hesitação entre visões contraditórias; é uma auditoria do que a mente vê como realidade. Mas ela não é o primeiro passo da apreensão do conhecimento, pois primeiro se vê, depois se forma opinião, e finalmente se aplica a dúvida. 
Podemos lembrar, então, duas formas clássicas de se entender o mundo. Primeiro, com Agostinho: credo ut intelligam (creio para conhecer). Mas daí pode decorrer uma ignorância crônica, a partir do viés de confirmação. Depois, temos Descartes: dubito ut intelligam (duvido para conhecer). Aí também há problema, pois começar pela dúvida implica numa filosofia que leve ao desespero, como bem se nota em Schopenhauer. Já Platão (ver diálogo Teeteto) afirma: "a filosofia começa com assombro". Heschel completa: "A dúvida pode acabar; o maravilhamento dura para sempre".


A atitude de assombro diante do mundo é adequada porque de fato o mundo é assombroso. Apesar de estarmos acostumados com ele, ainda assim ele é uma loucura. Porque uma coisa é recorrente, ela não deixa de ser espetacular. 
Imagine que você saiu de casa e viu um elefante rosa voando. Se isso acontecesse todos os dias, viraria rotina. Mas não deixaria de ser espetacular! O mundo é um elefante rosa voador. O problema é que frequentemente cometemos o erro de considerar conhecido e previsível o que de fato é desconhecido e absurdo.
Deve-se tomar um cuidado, porém. O fascínio não é um estado de contemplação inativa. Ao contrário, ele motiva a ação! Ele leva à inquietação, e esta por sua vez leva ao conhecimento.


Outro grande pensador do séc. XX é G. K. Chesterton. Seu livro "Ortodoxia" é uma obra-prima tanto da obstinação quanto da humildade que o Cristianismo inspira no homem. Nesse livro ele também fala do maravilhamento, ao longo do capítulo "A Ética da Elfolândia".
Chesterton logo afirma que as coisas em si são espetaculares, mais ainda do que suas versões exóticas. A humanidade em si é muito mais impressionante que as civilizações, o poder e as artes. Um homem em pé é mais espantoso que uma caricatura. A morte em si é muito mais trágica que um genocídio, e ter um nariz é muito mais cômico que usar um nariz de palhaço.




GK Chesterton


Um dia desses eu estava na Livraria Cultura da Av. Paulista, e bem na minha frente se repetia uma linda cena familiar. Parte da livraria tem o chão inclinado, e embaixo se posicionou um pai. Alguns metros acima, sua filhinha, de uns 4 ou 5 anos. Ela descia correndo, a toda velocidade, para os braços do pai. Então ela dizia: "de novo, de novo!!", subia a rampa, e fazia tudo de novo. As crianças tem essa vitalidade de aproveitar a vida mesmo nas coisas mais simples e ainda assim se fascinar. Aí lembrei do Chesterton, que justamente lembra dessa atitude exuberante e infantil de querer as coisas "de novo" e nos pergunta se Deus também não faz o mesmo com inúmeros fenômemos da natureza: "de novo", diz Ele, e o sol volta a nascer. "De novo", e as estações se repetem. Cristo, de certa forma, também falava dessa atitude perante o mundo quando nos disse: "Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus" (Mateus 18:3).
O mundo e as pessoas são fantásticos, e isso nos leva a diversas atitudes: daremos maior valor a eles, aproveitaremos melhor a vida e louvaremos a Deus pelo que Ele fez e faz.


É claro que não podemos aplicar o maravilhamento indiscriminadamente. Rigorosamente, espantar-se com absolutamente tudo é ser bobo. Mas quando não deveremos nos espantar? Isso é assunto pro próximo post.
José Gomes Ferreira, autor português, em seu livro "As Aventuras de João Sem Medo", descreve como João, antes de entrar num mundo fantástico, vê a seguinte frase escrita num muro: "É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR". Seria um conselho bacana pra se dar a qualquer recém-nascido.
Queridos, vamos olhar a realidade com olhos que façam justiça a seu encanto. Isso nos levará a ser mais gratos, nos abrirá a mente para os profundos atributos de Deus, nos conduzirá a uma expansão de conhecimento e nos inspirará a valorizar mais o homem e a natureza.



sexta-feira, 27 de maio de 2011

Andando na Selva #2 - As gigantes

Toda vez que ando numa floresta, fico atento às árvores. Elas estão por toda parte, mas cada uma tem seu tamanho, sua forma, seus frutos, suas folhas, sua cor, sua textura. 

É tudo verde, então é tudo igual?


Tento enxergar, e não só ver, principalmente porque toda essa realidade concreta e natural encerra um conhecimento infinito, assim como uma grande biblioteca. Há num hectare de floresta muito mais do que uma pessoa pode aprender numa vida inteira de estudo e observação. Dessa biodiversidade toda, quero falar sobre duas árvores. A primeira é apaixonante.

Ah, a castanheira! A bicha é bandida. Uma colossalidade* que chega a até 50m e domina as alturas da mata. Sua copa um tanto retorcida e espalhada é reconhecível à distância. Tem nome mais adequado para essa árvore do que Bertholletia excelsa? Excelsa! É isso que ela é. Mas é perigosa também. Os frutos, ou ouriços, caem no final da estação chuvosa: em janeiro e fevereiro. Nessa época é perigosíssimo andar em lugares onde a castanheira é abundante, pois se o ouriço cai da cabeça do caboclo, a morte é certa. É um fruto duríssimo. 

Ouriços roídos pela cotia. Dentro deles estão as castanhas.


Imagine uma bola de boliche caindo de 40m de altura. No chão da mata, dá pra notar que os ouriços chegam com tanta violência que se enfiam terra adentro. Só animais roedores, como a cotia, conseguem perfurar o fruto, para comer as castanhas que estão dentro. Tente quebrar um ouriço com as mãos e você não conseguirá. O homem tem que recorrer ao facão. 

 Castanheira em Humaitá, AM (Iberê Thenório, Globo Amazônia)

A castanheira é uma árvore vital para a economia amazônica, mas a produção tem caído nas últimas décadas, devido ao desmatamento e à falta de árvores jovens na mata. Isso ocorre devido ao extrativismo não planejado: como as castanhas (que são as sementes) têm sido retiradas da mata, não tem havido a formação de novas árvores. O preço da castanha, porém, só sobe, devido à demanda crescente. Da colheita ao ponto-de-venda, é um bom negócio.

O gênero que costuma ser mais abundante em florestas é o ficus. É impressionante o quanto esse gênero é importante para a humanidade. Na história de Adão e Eva, assim que pecaram, eles se cobriram com folhas de figueira. É a primeira árvore chamada pelo nome na Bíblia. 

 A queda do homem, óleo de Ticiano (1570)


Cristo citava a figueira extensivamente em seus discursos; é uma árvore muito comum no Mediterrâneo. Pois bem, a figueira comum, dos figos que a gente come, é do gênero ficus. A trepadeira unha de gato e a árvore sagrada do Hinduísmo e do Budismo (Bodhi ou Bo, que é uma ficus religiosa) também. Mas voltemos à Amazônia. Há uma enormidade de árvores do gênero ficus na floresta, que são chamadas por vários nomes, como gameleira, caxinguba, figueira e apuí, pra citar alguns. Duas características de grande destaque dessas árvores são o fruto e a raiz. O fruto porque é fonte de alimento para a fauna. O veado e a anta adoram a frutinha da caxinguba. Tanto é assim que o caboclo costuma "esperar" na caxinguba, isto é, esconder-se nas imediações ou no alto da árvore para caçar. Quanto às raízes, elas precisam sustentar uma árvore que é muito frondosa, e por isso se espalham muito. São "aéreas", ou seja, serpenteiam por muitos metros acima do solo. No seringal cachoeira, em Xapuri (AC), vi algo espetacular: um apuí com mais de 100m de raiz contínua acima do solo. Veja no vídeo abaixo o Nilson e eu seguindo os caminhos da raiz:


Falei de duas árvores amazônicas. Faltam alguns milhares. "O que conhecemos é uma gota; o que ignoramos é um oceano". Essa célebre frase de Newton traduz muito bem os mistérios da floresta. Quando você ver aquelas imagens panorâmicas da floresta amazônica, em que o verde parece um tapete uniforme, indecifrável, até monótono, lembre da castanheira e do apuí. Cada árvore ali tem seu valor, sua história, seu poder. Elas sustentam o ecossistema todo, já que floresta sem árvore não é floresta.



*  "Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado. Porque, diante de um gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradálo - Ó colossalidade! - na direção da altura?" 

Trecho do que é, para mim, um dos mais lindos pedaços de literatura brasileira: o conto São Marcos, de Guimarães Rosa. O angelim, irmão da castanheira em opulência, causou tanto espanto no escritor que o impeliu a criar uma palavra nova.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Nasce o Blog Dica Naval

Nasce um derivado do blog Com Pé e Cabeça.

A partir de abril de 2010, comecei a postar no tuíter as #dicasnavais, pílulas de conhecimento da área, que serviriam para aumentar a mentalidade marítima em meus seguidores. Inauguro o blog Dica Naval na semana em que a dica número 200 foi postada.

Primeiramente, postarei a listagem de todas as dicas navais, de 50 em 50. Depois, ao longo do tempo, algumas dicas serão comentadas e expandidas, para maior profundidade dos temas.


No Dica Naval o foco será em temas marítimos, engenharia naval e oceânica, setor de óleo e gás em geral, oceanografia, portos e hidrovias. Ou seja, tudo o que tem a ver com coisas que flutuam e os lugares onde essas coisas flutuam. O Com Pé e Cabeça manterá sua linha de temas um tanto misturados: Brasil, Amazônia, Política, Cristianismo e o que mais pipocar na cabeça.


Visite o Dica Nava!

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O Brasil, Mediador entre a Europa e o Trópico

No post anterior, citei um artigo de Gilberto Freyre sobre as matas. Este outro, que transcrevo na íntegra (veja este e outros textos na Biblioteca Virtual GB), fala sobre o protagonismo que o Brasil poderia desempenhar no mundo, enquanto mediador entre os trópicos e a Europa. É um artigo de 50 anos, mas não poderia ser mais atual. O Brasil emergente, destaque entre os BRICs, que reivindica assento no Conselho de Segurança da ONU e papel de liderança na América Latina, que articula relações mais intensas Sul-Sul e é cada vez mais visto como o país do presente e não do futuro, é este mesmo país que Freyre via no início dos anos 60. Cabe à nossa geração concretizar essa visão tão sóbria e tão vanguardista.





"A um brasileiro apercebido dos seus deveres de solidariedade para com os povos que pertencem ao seu mesmo tipo de civilização específica, não podem deixar de interessar aquelas populações como a de Goa, a de Moçambique, a de Angola, a da Guiné, que olham para o Brasil, em geral, e para São Paulo, em particular, como para uma evidência irrecusável de que talvez esteja em nosso tipo de civilização a solução mais adequada aos problemas de encontro de europeus com não-europeus em regiões tropicais e quase tropicais. Donde a necessidade de cada vez mais passarmos, os brasileiros, a pensar, a sentir e a agir como um povo em grande parte responsável pelo destino de outros povos, separados de nós por grandes distâncias físicas porém próximos de nós pelas formas de cultura; e cujo futuro, como cultura em desenvolvimento, talvez seja inseparável do futuro brasileiro.
Em livro recente e ricamente sugestivo, prejudicado menos que o do Professor Jacques Lambert pelo gôsto excessivo de generalização, mas ainda assim um tanto incontinente em certas de suas generalizações, um sociólogo francês, que todos os estudiosos brasileiros de assuntos sociológicos estimam e admiram - o Professor Roger Bastide - reconhece ter o Brasil se tornado potência demasiado grande para limitar seu destino à América do Sul. É uma nação que tem, a seu ver, papel internacional a desempenhar no Mundo de hoje. E refere-se, a êsse propósito, à idéia de uma federação de países de língua portuguêsa, infelizmente sem considerar, como devia ter considerado, a base sociológica para uma tal federação de evidente importância política, oferecida por aquêles seus colegas brasileiros que vêm sugerindo a especificidade de uma civilização dinâmicamente luso-tropical: civilização em desenvolvimento e não estabilizada. Idéia a que opõe a de uma "missão mais bela"- palavras suas - para o Brasil que seria a de pertencer o mesmo Brasil, de modo evidentemente mais efetivo, a um mundo latino que, a seu ver, deve erguer-se entre o mundo anglo-saxônico e o mundo eslavo, para salvar valores hoje ameaçados. A civilização latina estaria na Europa sob o perigo de imobilizar-se em formas arcaicas. O Brasil poderia concorrer para o seu revigoramento. E, desempenhando êsse papel, seria a grande nação mediadora entre a América, a África e a Europa.
Não vejo por que essa missão não possa vir a ser desempenhada pelo Brasil. Em certo sentido, e à revelia de políticos brasileiros ainda arcaicos em seus métodos de fazer política, é uma missão que já está sendo desempenhada pela cultura brasileira através dos seus Villa-Lobos, dos seus arquitetos modernos, dos seus pintores atuais, de alguns dos seus modernos pensadores e cientistas sociais.
Mas para cumprir essa missão, no melhor sentido da palavra, platônica, pensam alguns sociólogos brasileiros caber ao Brasil, agir, antes, aristotèlicamente, isto é, pragmàticamente; e articular-se com os demais povos hispano-tropicais, em geral, e luso-tropicias, em particular - povos que já não são particularmente latinos porém vêm juntando a uma herança multieuropéia valores de culturas tropicais, ameríndias, africanas e asianas, através de métodos especificamente hispânicos de interpenetração - numa possível comunidade federada. Assim, aquela sua mediação representará para o homem moderno alguma coisa mais do que a experiência brasileira: um conjunto de experiências da parte de portadores de uma cultura da mesma origem européia, que em vez de pretenderem guardar pura e apolínea essa cultura, misturaram-se a culturas não-européias, criando novas culturas que se vêm adaptando aos trópicos sem sacrifício de valores apurados pela experiência européia.
Dessas experiências, a experiência brasileira talvez seja a mais arrojada: a vanguarda. Mas não a única. Melhor é para o homem moderno receber os benefícios do conjunto de tais experiências que, mais do que uma mediação entre a Europa, a América e a África, podem representar uma mediação mais vasta e mais plástica: entre a Europa e o Trópico. E o grande mediador entre a Europa e o Trópico tem sido, não um vago latino, mas o hispano. Principalmente o português, a ser continuado num futuro já presente, pelo brasileiro."


Fonte: FREYRE, Gilberto. O Brasil, mediador entre a Europa e o trópico. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 22 jul. 1961.

Palavras de Gilberto Freyre sobre nossas florestas

Gilberto Freyre, grande brasileiro! Esses dias descobri a biblioteca virtual de suas obras, onde podem ser encontrados seus artigos, palestras e livros (entre eles o lendário "Casa Grande & Senzala").
Alguns dos artigos me chamaram muito a atenção. Ele era um tremendo pensador do Brasil, e foi um dos primeiros a ver nosso país como líder dos trópicos. Inovou também em conceitos sobre a arquitetura brasileira, a política e suas necessidades de modernização, as relações sociais e a valorização do negro, entre outros temas. 

Gostaria de destacar, porém, um texto que estava décadas à frente de seu tempo, escrito em 1935. O original você encontra aqui. Nesse texto ele fala do caso de Fordlândia (concessão do governo brasileiro à Ford de vastas porções de terras amazônicas, com o objetivo de produção de borracha natural em larga escala). Mas veja as considerações que ele faz sobre a necessidade de preservação da floresta:

                  "(...)   
             O americano Ray Nash, depois de estudar o problema das florestas no Brasil, fez a advertência mais grave que nos deixou em livro: "Brasileiros, cuidado com vossas florestas".

Essas florestas do Brasil constituem hoje a maior massa de matas tropicais da América e talvez do mundo. Mas não são eternas. Elas se esgotaram no Mediterrâneo - se não se adaptar entre nós uma política de socialização e da conservação, ou seja, na floresta bruta não o inimigo terrível da agricultura e da indústria e a ser vencido quase militarmente a machado e a fogo - "o machado civilizador", como diz Assis Chateaubriand; não a mina a explorar em proveito de duas gerações ou três, e com o sacrifício das vindouras; não o parque ideal onde exercer-se a ganancia do interesse particular em prejuizo do geral - mas alguma coisa de superior aos interesses de uma geração ou duas, de um grupo ou dois de ricaços, de um tipo único de atividade economica e agrícola.
Há areas no Brasil que desde já devem ser as que os técnicos chamam de "matas absolutas" - areas inacessiveis não só aos Fords americanos, ingleses, alemães e japoneses, com os brasileiros com os nomes nossos romanticamente indígenas: Abaetés, Caramurús, Carapebas, Ipirangas - areas que precisam de ser quanto antes nacionalisadas e socializadas, para assegurar a utilização social permanente de suas florestas. As grandes manchas de verde profundo que se alongam pelo interior do Paraná, entre São Paulo e a Bolívia e pelo litoral do Espírito Santo estendendo-se triunfalmente pela região amazônica.
(...)
A agricultura e a indústria devem ter suas fronteiras e seus limites.
Nash, que estudou o problema florestal brasileiro, depois de ter adquirido profunda experiência tropical nas Filipinas, já previa, há dez anos, que o Brasil, com suas reservas magnificas de matas, se tornasse, nestas alturas do século XX, o ponto principal de cobiça dos grandes industriais de madeira de sua terra que fatalmente se juntariam com políticos e com homens de governo da nossa. E com toda a honestidade deu o grito de alarme contra os perigos de "expansão capitalista" lembrando aos nossos homens de governo o exemplo da Índia, que ia já se saharizando, quando adotou uma política energicamente coletivista com relação as matas, sob o controle de um grande técnico: o alemão Dietrich Brandis.
(...)
Mas a verdade é que as manobras e penetrações do grande capitalismo já não podem ser interpretada conclusivamente em termos de petróleo: também em termos de quedas d'água e de matas."


FREYRE, Gilberto. As matas do Brasil. Folha do Povo. Recife, 12 Ago. 1935.



Apenas dois comentários. 
Em primeiro lugar, as "grandes manchas de verde profundo que se alongam pelo interior do Paraná, entre São Paulo e a Bolívia e pelo litoral do Espírito Santo" foram pro pau. Hoje são plantações de eucalipto, soja, milho, algodão, cana e pasto. Não sou contra essa ocupação do solo, pelo contrário, dela precisamos. Mas foi uma ocupação feita sem freios e hoje, quase 80 anos depois, vemos com tristeza que praticamente não há mais mata nativa nesses regiões. A Mata Atlântica, que se estendia do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, agora está reduzida a 7% de sua cobertura original. 
Em segundo lugar, ele se refere a "manobras e penetrações do grande capitalismo", que na época faziam lobby para explorar nosso subsolo. Essa briga foi tão ferrenha que teve uma distensão apenas em 1953, com a criação da Petrobrás. Já a cobiça internacional por nossas matas e nossa água é um problema muito mais recente, que mesmo hoje ainda não se verifica tão profundo. Entretanto, este é um fato do século XXI: com a escassez mundial de cobertura vegetal e de água, os países que detém essas riquezas estarão em posição favorável. Bom para o Brasil.



quarta-feira, 4 de maio de 2011

Andando na Selva #1 - Mundos Dependentes

Andando numa clareira.


Em janeiro de 2011 o autor deste blog fez uma viagem que mudou sua vida.
Moro em São Paulo, e fui ao Acre pela terceira vez. O Acre é um lugar que desde minha primeira visita amei. Amei especialmente por causa dos acreanos, gente adorável e acima de tudo, combativa. Não se meta com o povo de lá, porque é muita gente destemida num lugar só. Mas isso é assunto para outro texto.
Enfim, pra lá voltei, como quisera por um bom tempo. Dessa vez, o que meus sentidos capturaram naquelas 3 semanas tiveram impacto definitivo em minha visão da Amazônia e do mundo. Foi algo totalmente novo.

Desde a volta dessa viagem me propus a publicar aqui uma série de textos sobre essas experiências. Este é o primeiro e, ao longo das próximas semanas, outros virão.
Como introdução, me parece adequado traçar alguns comentários a respeito de dois mundos que parecem - apenas parecem - independentes: o verde e o cinza.

O homem criou um mundo paralelo, o metropolitano, em que a natureza tem sua relevância reduzida a quase nada. É possível passar dias sem ver uma porção de terra nua. É possível passar semanas tendo um contato com o mundo animal restrito a moscas e pombos.
Ignora-se a existência das estrelas e do sol (como dizem alguns, o crepúsculo é o maior espetáculo da terra; tem a sutileza de ser diário e gratuito, e ainda assim é menosprezado). Não se notam os rios. Em São Paulo, tente falar "tal lugar é depois de se atravessar o rio" e você receberá um sobrancelha levantada. Fale "tal lugar é depois de se atravessar a marginal" e você será então compreendido. A via rodoviária, que recebe o nome de marginal porque acompanha a margem do rio, toma então o lugar de protagonista que só ao rio caberia.
Na metrópole, o trabalho é em geral sedentário. Se é braçal, está ligado à técnica (como mecânica ou construção civil) e não à terra. Existe o síndico, o executivo, o policial, o frentista, o jurista. Já o agricultor, o camponês, o índio, o seringueiro, todos parecem fazer parte do passado ou nem mesmo existir. Mas eles não só existem como são indispensáveis à vida neste outro mundo paralelo.

Os alimentos do prato do brasileiro dependem da pequena e média propriedade, que fixa o homem no interior. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a agricultura familiar fornece cerca de 70% dos produtos que chegam às mesas brasileiras. O índio "gerencia", ocupando as terras indígenas, aproximadamente 13% do território nacional, preservando nossas terras e sua biodiversidade para nossos descendentes. Eles são verdadeiros gestores do futuro. O seringueiro hoje é um extrativista. Seu trabalho mudou, ampliou-se. Além da extração do látex (matéria-prima da borracha natural), o seringueiro retira da floresta, de maneira sustentável, uma vasta gama de produtos. Nossa castanha, nosso açaí, camisinhas e luvas cirúrgicas, o taco que colocamos no assoalho e a madeira boa dos móveis nobres, grande parte de tudo isso vem das colocações dos seringueiros. Dos caboclos amazônicos saem frutas, hortaliças, leite. Sai o cacau que dará origem ao chocolate.

Casa do Lacerda, um pai de família do interior acreano. Ele ainda será muito citado aqui.

Todos esses grupos sociais dão ao país uma outra enorme contribuição: eles ocupam o território, que de outra maneira seria ainda mais vulnerável do que já é, tanto a investidas de interesses internacionais como à integridade de nossa unidade territorial. E ao ocupar o território, mantêm preservadas largas porções de floresta, que é em si uma das maiores riquezas da humanidade.

Entretanto, esse mundo "natural" também depende do metropolitano, do mundo "civilizado". Ele precisa de infra-estrutura. Precisa de estradas para transportar pessoas e bens, precisa de comunicações, de energia elétrica, de saneamento. O Brasil profundo precisa de  preços mínimos para seus produtos, precisa de financiamento público, de um judiciário presente, de segurança pública. E, além disso, precisa dos produtos industrializados que as metrópoles inventam. Não há um caboclo que dispense armas de fogo, lanternas ou panelas de aço. 

Minha casa em São Paulo. Alguma semelhança com a foto anterior?

Não há dúvida que o mundo do interior amazônico é mais vulnerável que o mundo cosmopolita do lado de cá. Não há dúvida que eles têm dimensões geográficas, humanas e econômicas altamente díspares. Mas não podemos continuar vivendo como se fossem mundos independentes. Afinal, somos um mundo só. Um só país, um só planeta.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Sete Trovas, #2

Segundo post da série.

VIII.
Vou dormindo no busão...
O problema é a barulheira:
mulherada em discussão,
criançada em choradeira.


IX.
Para cada erro meu,
eu guardei uma pedrinha.
Já ergui um ateneu
com o estoque que eu tinha.


X.
Ele sonha, ele inventa,
mas se gruda no estrado.
Para os olhos são pimenta
os serviços do folgado.


XI.
Eram duas menininhas.
Saltitavam de mãos dadas
Apontavam andorinhas
e soltavam gargalhadas.


XII.
A faísca é limitada
por um verde resistente.
Mas se a seca é espalhada
ela queima um Continente.


XIII.
"Quem tem boca vai a Roma"
Se tu gosta de dar voltas.
"Quem tem boca vaia Roma"
Se tu gosta de revoltas.


XIV.
Emboscaram seu marido:
vinte tiros de uma vez.
Tomou ela um comprimido.
Recusou-se à viuvez.


Para ver a primeira coleção do "Sete Trovas", clique aqui.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O mundo tá caindo. Vou comprar um big mac.

Desastres naturais. Crimes terríveis. Guerras. Isso tudo sempre existiu. Só que hoje em dia ficamos sabendo de suas ocorrências, por causa da globalização, da TV e das mídias sociais, do avanço da ciência. Então o aumento é apenas aparente. Além do mais, a população mundial é cada vez maior e habita cada vez mais áreas de risco que não habitava antes. Logo, ocorrerão mesmo mais desastres e mais conflitos, e sua gravidade será maior.

Forças ocidentais atacam território líbio. Março de 2011. (Goran Tomasevic/Reuters)


Nesse suposto caos em que o mundo vive, não há nada de novo. A vida deve seguir seu curso, sua rotina. Vou comprar um big mac e passear com meu cachorro.

Esses dois parágrafos poderiam fazer sentido, não tivesse Deus se revelado. Veja o texto escrito há quase 20 séculos:


"E ouvireis de guerras e de rumores de guerras; olhai, não vos assusteis, porque é mister que isso tudo aconteça, mas ainda não é o fim. Porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino, e haverá fomes, e pestes, e terremotos, em vários lugares. Mas todas estas coisas são o princípio de dores.
(...)
E, por se multiplicar a iniqüidade, o amor de muitos esfriará.
(...)
Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem; e todas as tribos da terra se lamentarão, e verão o Filho do homem, vindo sobre as nuvens do céu, com poder e grande glória.
(...)
Aprendei, pois, esta parábola da figueira: Quando já os seus ramos se tornam tenros e brotam folhas, sabeis que está próximo o verão. Igualmente, quando virdes todas estas coisas, sabei que ele está próximo, às portas.
(...) 
Vigiai, pois, porque não sabeis a que hora há de vir o vosso Senhor. Mas considerai isto: se o pai de família soubesse a que vigília da noite havia de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria minar a sua casa."


São palavras de Jesus Cristo, escritas por Mateus (capítulo 24).

Minha gente, a atual situação do mundo está predita há tempos. Cristo, sendo Deus, disse que retornaria, e que haveria sinais antes de sua vinda. Ninguém sabe quando será. Mas esses sinais mostram que o tempo está próximo. 

Procure as revelações de Deus que tudo ficará mais claro. Não se esqueça dessas palavras de Jesus e dos sinais no mundo ao seu redor. Fale com Ele, como a um amigo. Ele se importa. Leia a Bíblia. Ali há sabedoria e esperança. Aqui você a encontra, inteira, online. Procure cristãos. Mas os verdadeiros, não os perseguidores, os intolerantes, os hipócritas, os arrogantes. Um grupo de pessoas mobilizadas estuda mais, faz mais e ama mais do que um indivíduo só.

Só não deixe de comprar seu big mac ou passear com seu cachorro. A vida continua. Mas é a sua percepção da realidade que pode mudar.



quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sete Trovas, #1

Com uma periodicidade ainda desconhecida, farei posts com sete trovas cada um. Este é o primeiro deles.


I. 
Não se pode usar canhão
Não se pode usar falange.
Mas podemos ter à mão
mais uns Julians Assange.

II.
Tem conceito que é tolice...
O que é crime organizado?
No Alemão ordem não viu-se.
Só correu descamisado.

III.
Para o que é bom, que enobrece,
que nos dará alegrias.
Para uma vida que preste:
vamos olhar pro Messias.

IV.
Ele mata e vitaliza
Unifica e separa
Leva cinzas, traz a brisa
O oceano o mundo sara.

V.
Como louca vem a morte.
Lhe parece indiferente
se o finado foi um lorde
ou se foi um indigente.


VI. 
Na cidade de São Paulo
Nunca vejo sabiá!
É um céu com mais estrelas?
Eu não quero morrer lá!

VII. 
Urubupungá e Dalçoquio!
Tem cada marca poética...
É como se o empresário
Buscasse uma nova estética.



Em tempo: saiba mais sobre a lendária trova na wikipedia e no site da impagável e magniloquente União Brasileira de Trovadores. Sim, existe uma União Brasileira de Trovadores!


Veja aqui o Sete Trovas, #2. 

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Elogio ao João-Vermelho

João-Vermelho é o esquerdista revolucionário, o inconformado. Neste post, João foi criticado. Mas, figura complexa que é, ele também tem os seus predicados.


O atributo mais admirável no João-Vermelho é sua lealdade. Admiro gente que estuda um ideal, crê nele e o serve.  Posso até discordar de um ideal, mas ao ver pessoas dedicadas a ele, bato palmas. Pois há poucas coisas mais detestáveis do que uma pessoa que só pensa em si, que tem como objetivo último de existência servir aos seus próprios interesses. Não é todo mundo trabalhando pelo interesse próprio que produz o bem comum. Isso seria mostrar que existe a mão invisível, que segue invisível até hoje. Mas é todo mundo trabalhando pelo interesse comum (e não apenas o próprio) que produz o bem comum.

Logo, o altruísmo e a abnegação são as mais nobres das virtudes, pois concorrem para o bem de todo mundo. Esse é inclusive o ideal do Cristianismo, o reconhecimento de que não é o interesse individual que mais importa. Deus está muito acima desses interesses. O amor a Deus é prioridade. E em igualdade ao amor a si mesmo, está o amor ao outro. Quando João-Vermelho renuncia a possíveis vantagens ou confronta pessoas por acreditar em princípios e ideias, ele está dando um valioso exemplo de boa conduta. Ele é leal, apaixonado. O mundo precisa de gente apaixonada e fiel. Num tempo de tanto relativismo, rochas fixas são muito bem-vindas, pois balizam o debate, e podem ser tanto elogiadas quanto atacadas. O problema do relativismo é que não pode ser nem criticado nem louvado, porque sempre está mudando. É uma postura furtiva e covarde.

Outra vantagem de termos o João-Vermelho atuante é seu zelo por questões que são diminuídas ou até mesmo ignoradas por grande parte dos homens públicos. Lembre-se do Plínio. Sem ele, teria o tema do salário mínimo sido debatido da maneira que foi? Seria o problema da dívida colocado em pauta? E ainda esses são temas pontuais. Há questões mais importantes. Sem João-Vermelho, falaríamos sobre a gravidade do problema da concentração de riquezas no Brasil, especialmente o capital e a terra? Falaríamos das sinistras desigualdades, da miséria, da opressão, da segregação? Falaríamos da importância dos movimentos sociais? Ou apenas os rotularíamos como bandidos? E quanto ao comum alinhamento cego às potências internacionais? João-Vermelho fala em autonomia internacional, fala em integração lationoamericana. Ele critica privatizações feitas a preço de banana. Não só no Brasil: na Colômbia, no México, na Costa Rica, na Rússia. Pois assim engordaram até à imoralidade homens como Carlos Slim, Daniel Dantas e Roman Abramovich.

Posso discordar muito do João-Vermelho. Ele é tolerante demais com uns, intolerante demais com outros. Ele é radical demais. Ele é aprendiz de ditador. Ele é crente em experiências malsucedidas. Mas, João, que bom que você existe. Como disse Voltaire, “eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sobre alternativas para o desenvolvimento da Amazônia

Enquanto o mundo discute maneiras de tornar as florestas valiosas em pé como forma de coibir o desmatamento, uma reserva em Xapuri, no Acre, pode ser parte da solução. Graças à luta dos seringueiros da Amazônia para garantir a sua posse sobre a terra, ao carisma e obstinação de líderes como Chico Mendes e às parcerias entre organizações sociais, governos, ONGs e a iniciativa privada, um novo modelo de desenvolvimento foi proposto e executado. Trata-se de um projeto agro-extrativista onde o desenvolvimento sustentável é uma realidade e não apenas uma falácia calculada. Para falar sobre as ideias de sucesso implementadas na Amazônia e sobre seus problemas e soluções, conversamos com Nilson Teixeira Mendes, um dos líderes da Reserva Extrativista Chico Mendes. O Sr. Nilson é seringueiro e extrativista, detentor de vastíssimo conhecimento dos mistérios, da fauna e da flora da floresta. Primo de Chico Mendes, participou dos empates dos anos 80 e é peça-chave no Seringal Cachoeira, área de 24 mil hectares onde 86 famílias vivem em harmonia com a floresta, não somente para subsistência, mas também para geração de renda. 
A seguir, os principais trechos da entrevista. As fotos são de Clevson Menezes, grande amigo meu, que é fotógrafo. Visitem o site dele em http://www.clevsonmenezes.com/.



Paulo Azevedo: Você poderia falar um pouco sobre a história do seringal Cachoeira e sobre a luta que foi pra que ele fosse protegido, por meio da criação da reserva extrativista?

Nilson Mendes: [Desde o primeiro ciclo da borracha], chegavam os nordestinos para explorar a borracha e acabaram se adaptando à floresta e ficando produzindo até os anos 60. Depois dos anos 60 começou a melhorar, entrar mais um produto que é a castanha. Começou a ser conhecida fora do Brasil, no Brasil poucos conheciam a castanha, era produzida aqui e já saía diretamente para exportação. Aí veio o tempo que o governo brasileiro achava que esse potencial florestal não era mais viável. Então veio aí os anos 70 quando foi aberto o espaço para a pecuária. Aqui no Acre, como é uma parte muito boa, com muita terra plana, aqui foi que chegaram muitos sulistas que começaram a trocar a floresta pelo boi. Então desmatava a floresta, queimava e botava o boi. E o seringal cachoeira até os anos 70 ficou ainda comandado por patrão e daí o patrão conseguiu que demarcasse a sua terra e a vendeu pros fazendeiros. O que ele queria era transformar esses 24 mil ha de floresta em pastagem.
Aí a gente começou a ver que a gente tinha que se organizar. Porque não adiantava o sindicalista falar em conservação ambiental sem o processo produtivo. Então o movimento organizado através do empates foi muito em cima disso. Aí eles passaram um trecho de terra, uma parte do seringal pra um fazendeiro chamado Darli Alves. Aí ele foi e prometeu que se ele perdesse isso aqui o Chico não viveria, então foi isso que aconteceu. Nós os seringueiros fizemos o empate de 3 meses e conseguimos a conquista da terra, mas eles mataram o Chico Mendes, em 22 de dezembro de 1988. Em 1989 foi quando o governo assinou o decreto de assentamento de reserva, depois que mataram o Chico Mendes, um ano depois.
Pra gente se estabilizar a gente teria que ter um processo econômico mais viável, e a gente não tinha acesso, não tinha estrutura. E a gente começou a observar que tinha que buscar apoio, mas não tinha apoio em canto nenhum porque não tinha governos voltados pra essa população tradicional, aí a gente teve que se organizar em cooperativas e associações e pensamos em criar uma associação porque diziam "Só podemos liberar dinheiro se tiver associação e estiver OK", mas ninguém sabia o que era uma associação e o que precisaria pra uma associação funcionar. Aí a gente fez um projeto de desenvolvimento pra comunidade, conseguimos trazer os banqueiros, o BID, o BNDES e outros aqui. Também trouxemos ministros, presidente da república, e aí começamos a mostrar que era possível o desenvolvimento das comunidades amazônicas. Que a gente tava aqui na ponta mas a gente tem um potencial muito forte, não só a seringa, não só a castanha, não só a madeira. Torraram muita madeira. Brocavam, derrubavam, queimavam, sem tirar esse potencial e expor no mercado, e servir a sua própria sociedade. E sim, só viam o caminho da exportação e pouco tiravam de qualquer forma. E aí a gente teve que trabalhar os processos diferenciados pra comunidade, no caso o manejo florestal de uso múltiplo, e aí trouxemos em 99 o plano de manejo florestal de madeira pra cá.

Paulo Azevedo: Qual é a renda média de um trabalhador aqui na reserva ao longo do ano?

Nilson Mendes: A renda média é de R$ 6000 por ano, que é um valor muito alto, pois em alguns lugares estão em saldo negativo.

PA: Nesse valor o senhor se refere ao manejo da madeira e também castanha e seringa ou somente a madeira?

NM: A gente tem 30 famílias envolvidas no manejo da madeira mas a maior parte é só na castanha, borracha, açaí e a sua roça pra subsistência. Então assim, a gente sabe que esse projeto de manejo florestal é uma composição, é um projeto piloto.
Em 10 hectares de floresta de manejo florestal nós temos em média 338 árvores em ponto de corte. Mas, enquanto temos 338 árvores, nós só selecionamos para um prazo de 40 anos uma média de 25 árvores, quer dizer, 10 m3 por hectare, enquanto uma empresa, com corte profundo, tira 70 m3 num hectare. Então a gente sabe que isso garante a sustentabilidade e a continuação das espécies sem botar em risco sua sobrevivência.

PA: Para que o nosso leitor possa ter uma idéia do valor da floresta em pé, quanto vale mais ou menos o m3 da madeira dessa qualidade que o senhor mencionou?

NM: Olha, quando tem todo o acabamento final, dá uma média de R$ 1200, só que o custo dessa produção pra ficar assim acabado chega a uns R$ 800 reais. Para o produtor, fica ao redor de R$200 livre por metro cúbico. Mas isso já é muito porque o processo de garimpagem pagaria R$10 por m3 e em muitos cantos não pagaria nada porque ele sabia que se o produtor pressionasse perderia o produto porque é um processo ilegal, e quando é ilegal, todo mundo sabe o que dá. Então é muito melhor você pagar, porque isso é sustentabilidade também. Então esse plano a gente tá trabalhando ele e tá vendo se a gente aumenta cada vez mais a renda pro produtor, mas a gente sabe que não é fácil, porque o produtor sempre é visto como segundo plano. Mas aqui no Acre a gente já tem dado uma patente mais alta para os extrativistas, para os seringueiros. E a gente discute o processo de desenvolvimento sustentável. E a sustentabilidade não é produzir só madeira. Aquele que estiver pensando em produzir só madeira esqueça, porque isso não é plano de desenvolvimento. Pra nós, amazônicos, a monocultura não é desenvolvimento sustentável. O que é sustentabilidade pra nós incorpora não só a seringa, a castanha, a madeira, o açaí e outros produtos, mas o peixe, a fauna e tudo o que o produtor tem, como galinha, pato e porco e tudo o que ele cria em volta da sua casa. Quem está lá fora deve enxergar isso, e ver a floresta não só como um santuário, mas como uma área que pode produzir e manter o verde para sempre.

Conversa na mata. Helliny estava com a gente, amiga goiana com coração acreano.

PA: Quais as perspectivas de que a reserva receba dinheiro por manter a floresta em pé, seja de governos estrangeiros ou do governo federal? Ou de receber por créditos de carbono?

NM: Essa é uma discussão nova que está acontecendo aqui na Amazônia. Vive na Amazônia muita gente pobre, muita gente carente, muita gente ainda passa necessidade com tanto dinheiro que circula no mundo. Eu acredito que o Brasil tá fazendo uma campanha de mostrar para o mundo que nós somos capazes de fixar carbono e essa é uma discussão que acontece e a gente pode com certeza ganhar para que a floresta se mantenha e pé. Eu acho que isso seria muito viável, mas precisaria que todos aqueles que degradaram pudessem fazer o seu reflorestamento e manter o equilíbrio.
E a gente sabe que árvore crescendo é sequestro de carbono. Então a árvore que já parou de crescer ela não vai mais fazer isso. Quando você tira e dá oportunidade pra outra crescer, você está fazendo exatamente o que a Amazônia precisa, o que naturalmente a natureza já faz.

PA: O governo federal e o governo do Acre implantaram aqui em Xapuri uma fábrica de preservativos. Qual foi o impacto dessa fábrica no mercado de borracha e aqui na reserva?


Extração do látex da seringueira.

NM: Essa fábrica de preservativos foi um benefício muito bom. O Acre não tinha infra-estrutura adequada até 3, 4 anos atrás. E a gente falava em desenvolvimento sustentável com os produtos produzindo, mas não tínhamos uma fábrica de beneficiamento de castanha de qualidade, não tínhamos uma fábrica de preservativos, então assim, todo produto tinha que sair para fora pra voltar novamente pra gente comprar esse produto muito caro. Na verdade a fábrica de preservativo veio ajudar muito pra gente reativar todas as estradas de seringa porque a seringa tava bancando até 3 anos atrás R$250 por ano em média pra cada família extrativista. Então estava quase sendo inviável você abrir uma estrada e cuidar dela, e cortar. Porque não é fácil você rodar 14km por dia a pé pra manter o látex à disposição da fábrica, se não tivesse um preço melhor. Porque hoje se paga R$4,80 por quilo de borracha seca (preço no segundo semestre de 2009), quer dizer 2L de leite vai dar um quilo de borracha seca. Quase todos os seringueiros aqui em Xapuri conseguiram voltar a suas terras e fazer a reabertura das suas estradas. Tiramos, aqui no cachoeira, uma média de R$4160 no ano passado no látex. E na castanha, uma média de R$3000 (Nota do entrevistador: somando esses valores, temos mais que os R$6000 anteriormente referidos. Isso ocorre pois esse valor é a média de todos os trabalhadores da reserva. Mas nem todos produzem tanto látex quanto castanha. Os valores individuais de cada produto se referem à média dos trabalhadores que o produzem). Eu acho que uma unidade com uma média de 300 ha de floresta tem capacidade sim de manter os seus filhos e netos ali localizados no local de forma ordenada. Mas isso precisa de um bom monitoramento e com certeza o governo vai estar empenhado pra bancar esse desempenho junto aos segmentos sociais que a gente sozinho não tem força. Mas quando juntamos os segmentos sociais com o poder de governo e buscando uma parceria de troca de experiência e conhecimento com as universidades do Brasil e do mundo a gente é capaz de fazer uma história mudar, e mudar a vida de um povo.

PA: A gente percebe uma atividade muito grande das ONGs estrangeiras aqui no Acre. Você já teve contato com alguma entidade, ou pessoas, que estão se disfarçando de membros de ONGs, de ambientalistas, mas na verdade estão defendendo os interesses das grandes potências e de suas empresas?

NM: A gente sabe que há muitas pessoas interessadas nisso. Mas a gente também tem que aprender a fazer uma troca de experiências. A única coisa que você tem que ter é auto-controle nas comunidades para que não aconteça a biopirataria. Agora, quem quiser contribuir para o desenvolvimento sustentável, a gente tá de braços abertos pra receber e trocar experiências.


 Linha (estrada secundária) no Seringal Cachoeira.

PA: Como está a cooperação da reserva com universidades ou com empresas para que o conhecimento que foi acumulado aqui ao longo das décadas sobre todo esse potencial que a Amazônia tem, seja explorado e chegue mais facilmente às pessoas de fora da região?

NM: A cooperação é muito importante quando as universidade entram, os órgãos de pesquisa como Embrapa e outros entram. Aí começa a descobrir, mesmo às vezes demorando, porque pesquisa você sabe que leva tempo para dar um resultado. Mas é melhor começar agora do que começar depois, quando não tiver mais jeito. Eu acho que ainda temos jeito na Amazônia e sim, esses processos de pesquisa, troca de experiência, eles são muito importantes. É muito importante a questão de descobrir os potenciais medicinais, para salvar vidas. E também as riquezas biológicas, para garantir as espécies para o futuro e evitar os riscos de extinção.
Eu só acredito que a gente pode ter um grande sucesso futuramente porque já tá tendo essa cadeia, essa troca de experiência entre o poder capital e o poder social. E mostrar que só trazendo o processo de engenharia e as faculdades pra desenvolver as pesquisas e mostrar os potenciais que temos, isso é capaz de mostrar a sustentabilidade que a floresta tem.




[Texto publicado em março de 2010 no jornal "O Politécnico"]